Lembranças registradas
A como era bom aquele tempo! Eu adorava acordar e jogar bola. Não queria saber de mais nada. Minha mãe vivia mandando eu estudar e me preocupar com o futuro, porque num país como o nosso, onde não se tinha muita expectativa de um futuro melhor, tínhamos que fazer a nossa parte.
Eu até que ia para a escola. Ah, quer dizer, ia de vez em quando porque o que eu gostava mesmo era de jogar bola. Então, sempre que conseguia dar uma escapada, fugia das aulas e ia para um campinho ali no fundo da escola. Não era exatamente um campo, daquele que a gente é acostumado a ver na televisão. Era um terreno, esburacado e com algumas árvores caídas. Mas nada do que uma forte e bela imaginação para tornar o impossível em realidade.
Eu e meus amigos nos sentíamos jogadores da seleção oficial da Angola. As vezes, eu jogava sozinho. E como me divertia! Eu chutava a bola e depois saia correndo, eu era o artilheiro e goleiro ao mesmo tempo. Bons tempos!
E se tem um dia que não vou esquecer é meu aniversário de 13 anos, pois foi a primeira vez que ganhei uma bola. A minha bola de futebol. Foi o dia mais feliz da minha vida, e nada vai conseguir apagar essa lembrança.
Eu andava para cima e para baixo com a bola. Ela vivia debaixo do meu braço esquerdo e não conseguia soltar nem para dormir.
A bola rolou tanto, mas tanto que, em pouco tempo, ficou surrada e velha! Mas eu não ligava, para mim era o maior tesouro do universo!
Lembro-me de um dia que estava voltando da escola com meus amigos e decidimos parar no velho campinho para jogar uma partida. Meu time jogou muito. Eu fiz três gols. E como já estava ficando tarde decidimos voltar para casa, mas eu não. Eu queria jogar e jogar e jogar. Então, falei para o Tíbio, meu vizinho, para avisar para minha mãe que logo menos estaria em casa.
Então, enquanto eu estava jogando, sendo artilheiro e goleiro, simultaneamente, percebi que havia um homem ali perto só me observando. Fiquei bem assustado. Parei, segurei minha bola e dei alguns passos para atrás.
O homem, percebendo minha preocupação, veio ao meu encontro e me cumprimentou. Para ser sincero, eu nem lembro o que o homem falou, pois eu estava encantado com o objeto que ele segurava com suas mãos. Era tão bonito quanto minha bola e eu até já tinha ouvido falar daquilo. Era uma câmera fotográfica. Quase ninguém tinha e só os ricos tinham retratos.
Então, o homem ficou conversando comigo, perguntou quem eu era, onde morava e depois de muita conversa, pediu para jogarmos uma partida. E eu, é claro, não hesitei. Jogamos umas duas vezes e estávamos exausto! O homem era de um outro país e até me ensinou umas técnicas.
Depois de muitas risadas o homem falou que precisava ir para casa, e eu também precisava, pois estava bem tarde. Mas antes de ir embora, o homem pediu para tirar uma foto para registrar aquele momento. E nossa, fiquei super feliz. Além de ter aprendido novas jogadas ainda fui fotografado. E assim, fomos embora. Eu por um lado e o homem para o outro.
Nunca mais vi este homem. Entretanto, a lembrança de minha infância e daquele momento com o fotógrafo desconhecido, nunca saíram da minha mente.
Hoje estamos vivendo tempos difíceis. Morava em Cazombo, aqui mesmo na Angola, mas tive que me mudar para a província do Alto do Zambeze. Não é tão perto de onde morava. Por sinal, é muito longe do campinho. Alias, aqui não tem campinho de futebol.
A minha família teve que fugir por causa da guerra, destruíram tudo! Provavelmente, vou ter que me mudar de novo. Hoje, nós vivemos escondidos, praticamente vivo dentro de um buraco. Ou melhor, em uma caverna.
Mas o pior de tudo, é que além de não poder jogar futebol eu não posso mais andar com a bola debaixo do braço esquerdo. Se alguém ver, vai roubar ou até me matar. Tudo aqui é proibido.
Hoje, encontrei um caderno e uma caneta jogadas no chão, quase perto da “porta” de onde estou morando. Provavelmente, alguém deve ter jogado ou até mesmo, pode ter sido jogada pelos soldados.
Depois de olhar o caderno, fiquei pensando bastante e vi como minha mãe estava certa. Como é importante estudar. Se os homens que começaram a guerra tivessem estudado não existiria guerra. Eles iam querer alcançar a paz, isto sim!
Mas nem tudo é como esperamos, mas mesmo com um presente difícil continuo acreditar em um futuro melhor. E como não posso brincar mas com minha bola escrevi essa carta.
E se você está conhecendo minha história é porque achou minha bola e leu a carta que estava dentro dos fios de costura da bola. Eu não sei o qual vai ser o meu futuro.
Mas já que você achou a bola, corra, jogue, brinque, imagine! É na imaginação onde tudo pode virar realidade. E o mais importante, nunca esconda os seus tesouros. Compartilhe. Quem compartilha, distribui felicidades e sonhos. E eu compartilhei o meu.
Não seja como esses homens da guerra, não destrua! Construa!
Zulu Carlos, 15 anos, 1997.
Camila Prestes
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